Maluncolandia

O Mundo de Dentro


Eu achava que era ilegível quando pequena. Que ninguém poderia ler meus pensamentos pelo meu rosto. Eu congelava-o instantaneamente antes de uma surpresa e falsificava-o, o medo ficava atrás de uma máscara de concreto, assim como qualquer outro sentimento. Ninguém via dentro de mim, ninguém sabia de mim. Eu era meu próprio segredo, ou pelo menos assim achava. Essa deve ser uma das primeiras grandes coisas que aprendemos, as pessoas nos vêem.
Todos me viram, leram no meu rosto meu desespero metamorfoseado, da transformação inevitável. Virei moça aos nove anos. Brincava de bonecas na casa de uma amiguinha, fui ao banheiro e vi diante dos meus olhos a trágica situação, aquilo que eu já sabia o que seria, mas não seria possível comigo, que fosse acontecer justo comigo? Que fosse então com as outras que vivem nesse mundo compartilhado e compactuam mudas a certeza de serem o que são. Não, mas não eu, me sentia uma metamorfose de Kafka, muito embora naquele tempo ainda não o conhecesse. De certo não era uma borboleta, quiçá uma mariposa com suas antenas felpudas e olhos estranhos, era mais asqueroso um tanto.
Eu havia sofrido uma mudança brusca de vida e observei ali naquele banheiro, minha infância indo por ralo a baixo, suja de sangue. As catracas invisíveis giravam e ninguém as deteria. Eu estava me perdendo, perdendo minha vida, deixando de ser a única coisa que eu sabia ser boa, criança. Perdendo a melhor época da minha vida, por tudo que eu sabia naquele instante, que via anos mais tarde. O desespero foi tanto quanto o medo da morte, uma criança morreu um pouco em mim.
Ultrapassou qualquer máscara que eu houvesse tido, a imparcialidade falsa de uma menina fria e calculista em se manter em segredo do mundo ruiu. Corri, corri desesperada pelas ruas, mostrando minha verdadeira face, senhoras sentadas nos portões de suas casas viram meu rosto, me decifravam. Uma meninota usando a camiseta do pai como vestido, cabelos despenteados, correndo descalça a caminho de casa. Pedir colo talvez, e a confirmação de que tudo era mentira.
Recebi ao chegar uma das grandes lições da vida, eu era legível. Mainha mal mal olhou pra mim e foi logo perguntando se tinha acontecido o que meu rosto revelava. Meu desespero ao atingir de vez todos os lados da minha consciência, duplicou-se. Não chorava agora apenas por ser moça e não mais menina, mas também por não ser mais só um segredo meu.

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Onde estás

BemVindo à maluncolia da maluntropia.
à maluscópia malusco-fusca.
metasensorial, de palavras agridoces, e melodias espinhosas, de vozes como chamas de velas e maciez colorida.

onde sempre se encontra minhas próprias descrições derretendo.